FERREIRA GULLAR *
'Ao passar a gravação para o disco, verificou ter captado um passarinho e, então, decidiu destruí-lo'
ELE É um excelente e raro poeta, que terá escrito uns 20 poemas em toda a sua vida. Sou certamente o único amigo que possui no mundo. Tem alguns parentes, filhos de uma irmã já falecida.
Como herdou dos pais alguns bens, esses parentes tentaram obter um diagnóstico médico para considerá-lo louco e, portanto, incapacitado para gerir a herança da família. Ele percebeu o golpe, fugiu de casa e nunca mais apareceu. Mudou-se para Lisboa, onde viveu alguns anos, e depois voltou, na moita, de modo que, para os parentes gananciosos, ele deve ter morrido.
Na verdade, reside, faz alguns anos, num pequeno apartamento no centro do Rio, num prédio onde só há escritórios e firmas comerciais. Ninguém sabe quem ele é nem o que faz. Com o resto do dinheiro, comprou um terreno em Magé, no Estado do Rio, e o doou à prefeitura para que instalassem ali um clube esportivo para meninos pobres, com campos de futebol e quadras de tênis.
A prefeitura aceitou a doação e nada fez. Agora ele está tentando anulá-la para entregar o terreno ao governo do Estado, a fim de ali construir escolas e moradias para desabrigados. O processo burocrático está em marcha; marcha lenta, claro.
Quando o conheci, em 1952, na casa de Mário Pedrosa, ele era funcionário do Centro Psiquiátrico Nacional, do Engenho de Dentro, onde ajudou a dra. Nise da Silveira em seus ateliês de terapêutica ocupacional. Se não me enganou, quem o levou a Mário Pedrosa foi Almir Mavignier, braço direito de Nise. Ele escrevera já então os poucos poemas que constituem a sua obra poética.
Tornamo-nos amigos e vagabundávamos pelo centro do Rio, frequentando o Vermelhinho e os botecos da Lapa, em companhia de Oliveira Bastos, Carlinhos de Oliveira e Amelinha, que era pintora e minha namorada. Publicou uma plaqueta de 34 páginas e distribuiu a reduzidíssima edição entre escritores indicados por mim. Um dos poemas dizia:
"Tapei a flor na noite
e os dias se esconderam.
Descabida metade das partes
relâmpago das cores".
Mas eis que ele, dias depois, aparece no Vermelhinho com um exemplar de seu livro, abre-o, estica com a unha da mão a linha que prendia as páginas, e afirma: "Isto vai arrebentar e misturar os poemas, quebrando a ordem em que estão. Vou recolher todos os exemplares e queimá-los. O teu está aí contigo?". Respondi: "O meu você não vai queimar coisa nenhuma". E o tenho guardado até hoje.
Pouco depois, decidiu gravar os poemas num disco. Usou um gravador do Centro Psiquiátrico e, de manhã bem cedo, fez a gravação. Sucedeu que, ao passá-la para o disco, verificou ter o gravador captado o trinado de um passarinho e, então, decidiu destruí-lo. Tentei dissuadi-lo, mas, para minha surpresa, no dia seguinte, ele me procurou para me informar que o trinado do passarinho enriquecera a gravação.
Editou então um álbum com o disco e me deu um exemplar que guardei até que meus filhos, brincando, o inutilizassem. Sobrou o álbum vazio.
Ele tem hoje 84 anos e, de vez em quando, aparece em minha casa. Outro dia, surgiu sem me avisar, sentou-se diante de mim e me perguntou se ainda tinha o disco com o trinado do passarinho.
Respondi que tinha apenas o álbum vazio, onde estão impressos os poemas do disco. Ele, então, me informou que viera com o propósito de destruir o disco, mas, como este já não existia, destruiria o álbum. Tomei-o de suas mãos e disse-lhe que não ia destruir álbum nenhum.
Ele empalideceu, me olhou nos olhos e afirmou: "Você não tem o direito de me impedir. Os poemas são meus, o álbum é obra minha. Esses poemas não correspondem mais ao que considero minha poesia".
Tentei explicar-lhe que a nova edição que fizera dos poemas, em 1990, já deixava claro que sua visão sobre seus poemas mudara, uma vez que excluíra dela aqueles que não considerava perfeitos, à altura de sua exigência. De nada adiantou. Acusou-me de adotar uma atitude autoritária em vez de agir como amigo e foi embora muito zangado. Essa zanga passa, pensei comigo, sorrindo.
Abri o álbum e li:
"O indivíduo estava no chão
e a pose passeava na forma".
* FOLHA DE SÃO PAULO - 20/03/11
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