19 de março de 2011

'A injustiça da justiça social'


socialjustice.jpgRecorrentemente, ocorre algo que resume perfeitamente a ideia por trás disso que chamam de "justiça social".  De todas as formidáveis críticas que seus detratores já escreveram sobre esse ignóbil conceito, nenhuma é páreo para a elegante simplicidade de um recente trabalho feito justamente pelos defensores da "justiça social".  Refiro-me aqui a um recente vídeo feito para o Dia Mundial da Justiça Social [1], no qual alunos e professores tinham de completar a seguinte frase:
Todo mundo tem o direito a(o) ___________

O vídeo é uma pitoresca montagem de vários possíveis complementos para essa frase, tendo uma agradável e convencional música como pano de fundo.  Ele mostra alunos e professores completando a frase acima, mostrando suas respostas escritas em suas mãos, braços e pés.  As pessoas no vídeo dão respostas que abrangem todos os tipos de coisas desejáveis, desde conhecimento, amor, justiça, compaixão e verdade até educação, saúde, comida, água limpa, nutrição, sapatos, dançar, rock and roll e até mesmo pirulitos e sorvete.  Veja o vídeo.

Algumas dessas demandas, se interpretadas muito caridosamente, podem ser interpretadas como genuínos direitos, porém a maioria é totalmente extravagante, como os supostos direitos a sorvete e rock and roll.  Ademais, o peso das demandas desse último tipo torna a mensagem do vídeo bem clara: tudo que é desejável é um direito.  Quer mais comida?  É um direito.  Quer melhores serviços de saúde?  Também é um direito.  Quer ter conhecimento e compaixão?  São direitos também.  Quer amor, dançar, cuidados pré-natais e pirulitos?  Direitos, direitos, direitos, direitos.

Embora sucinto e simples, o vídeo demonstra perfeitamente a vigente postura em relação a direitos que impregna as atuais discussões políticas, particularmente entre os defensores da "justiça social".  Para tais pessoas, a noção de "direitos" é um mero termo para merecimentos e benefícios, indicando que a pessoa pode e deve exigir o acesso gratuito a qualquer bem que lhe seja desejável, não importa o quão importante ou trivial, abstrato ou tangível, recente ou antigo ele seja.  Trata-se meramente de uma afirmação de desejo, e uma declaração da intenção de utilizar a linguagem dos direitos para se obter tal desejo.

Com efeito, dado que o programa da justiça social inevitavelmente envolve a exigência do fornecimento de bens pelo governo, tudo pago por meio dos esforços de terceiros, o termo na verdade se refere à intenção de se utilizar a força para se realizar os próprios desejos.  O termo não é utilizado para enfatizar que as pessoas devemganhar merecidamente os bens desejados, por meio da ação e do pensamento racional, da produção e das trocas voluntárias, mas sim para enfatizar que se pode confiscar violentamente os bens daqueles que podem ofertá-los.

Trata-se de uma noção irremediavelmente espúria a respeito do que são direitos.  Um direito genuíno é uma prerrogativa moral oriunda da aplicação de uma filosofia moral à natureza do homem.  O termo é um termo filosófico que indica um princípio moral genuíno, um princípio que deve ser deduzido objetivamente de um exame da natureza da moralidade e da natureza do homem.  Direitos não são meras construções subjetivas, como são frequentemente tratados.  Ao contrário, direitos são princípios objetivos validados por uma filosofia moral (em particular, por uma filosofia política, que é o sub-ramo de uma filosofia moral que lida com a moralidade do uso da força).

Um indivíduo possui o direito a algum bem específico — em oposição a um mero desejo por esse bem — apenas caso ele possua uma genuína prerrogativa moral que o permita ter tal bem.  Tal atitude deve necessariamente ser acompanhada do fato de que outros indivíduos devem correspondentemente ser moralmente proibidos de impedir que o proprietário desse bem possua tal bem.  O direito não pode existir em um vácuo, hermeticamente isolado de outros direitos.  Assim, dizer que uma pessoa tem direitos de propriedade (uma notável omissão do vídeo) não é uma mera afirmação de um simples desejo por algo útil.  Trata-se de uma afirmação de que émoralmente certo que um indivíduo controle sua própria propriedade, e moralmente errado que outros interfiram nesse controle.  Direitos referem-se ao que é realmente direito — isto é, ao que é moralmente certo.

Direitos genuínos existem como verdades eternas de uma filosofia moral.  Eles são princípios que se mantêm verdadeiros independentemente de sua época ou lugar, independente do estado das atuais intervenções.  Logo, não pode existir algo como o direito a sapatos, sorvete ou rock and roll, coisas que já estiveram totalmente ausentes da invenção humana.  Ter uma visão contrária a essa significa reduzir os direitos a uma simples lista de compras abrangendo as últimas engenhocas e quinquilharias inventadas.

Como os críticos da justiça social sempre foram obrigados a apontar ad nauseam, alguém afirmar que tem direito a algum bem ou serviço tangível, como água limpa, serviços de saúde, educação, cuidados pré-natais ou sorvete, significa que uma outra pessoa tem a obrigação de ofertar o bem ou serviço em questão.  Significa afirmar a prerrogativa moral de obrigar outros a suprir seus desejos, à custa dos esforços deles.  Quando em conjunto com um apelo ao governo para que este forneça os bens ou serviços (como é toda a intenção), tal postura significa afirmar a prerrogativa moral de utilizar a força para se realizar os próprios desejos — obrigar os outros a dar para você o sorvete deles, a água limpa deles, as habilidades médicas deles e por aí vai.  É o mesmo princípio seguido pelo ladrão, pelo estuprador e por outros malfeitores, os quais encaram seus desejos como uma razão para se imporem violentamente sobre terceiros.

A propaganda da "justiça social" funciona bem porque sabe como ocultar desejos sob a linguagem de direitos, ao mesmo tempo em que se esforça para evitar qualquer menção desconfortável a como esses desejos devem ser supridos.  Assim, vemos no vídeo a afirmação do direito à "educação gratuita".  Não vemos ali a afirmação, que seria bem mais honesta, do direito a "forçosamente confiscar o dinheiro dos outros para pagar pela própria ecustosa educação".  Não, é a educação "gratuita" que é declarada como sendo um direito.  Mas que educação gratuita é essa?  Gratuita para quem?

Em uma sociedade racional, com um adequado entendimento sobre a natureza dos direitos, a afirmação de que há uma prerrogativa moral a coisas como educação livre, serviços de saúde ou à oferta de sorvetes, seria vista como o que realmente é: uma constrangedora reductio ad absurdum.  Manifestações em que jovens afirmam seus direitos de maneira vacilante, sem qualquer consideração aparente com a questão sobre de onde viriam seus desejados bens, poderiam ser consideradas como apenas um divertido exemplo da ingenuidade e dos ideais tortos da juventude.  Porém, na cultura sentimental e piegas da atualidade, tais manifestações são na verdade feitas pelos defensores da "justiça social" como uma expressão de seus próprios ideais.

Alguns podem discordar dessa minha caracterização dizendo que vários dos direitos afirmados no vídeo supostamente tinham a intenção de ser irônicos.  Ninguém diria seriamente que há um direito a sorvete ou a rock and roll — eles estão apenas fazendo graça, se divertindo! Ei, relaxe!

Mas eis aí o problema com essa visão: afirmar que há um direito a sorvete ou a rock and roll não é uma postura mais ingênua ou tola do que afirmar que há um direito a serviços de saúde ou a educação "gratuita".  Ambos são exemplos de uma demanda por bens ou serviços que são ofertados pelos esforços de terceiros — e da elevação desse desejo à condição de direitos.  Os primeiros são uma reductio ad absurdum dos últimos exatamente porque ambos os tipos de exigências partem da mesma abordagem filosófica do que são direitos — eles são diferentes apenas no grau, mas não no tipo.

Essa confusão entre desejo e direito, infelizmente, é predominante nos debates da atualidade.  Trata-se de um erro perfeitamente compreensível, dado o nível da educação e do debate público da atualidade.  A maioria dos jovens em idade universitária ainda não foi apresentada a um sério argumento filosófico sobre a natureza dos direitos.  Assim, todo seu conhecimento a respeito desse conceito advém daquilo que ouvem de grupos de pressão em busca de boquinhas no sistema político e da demagogia de políticos.  Sua afirmação de que há um direito a sorvetes é ridícula, porém não menos filosoficamente defensável do que milhares de outras afirmações de direitos feitas diariamente em jornais e nas tribunas das legislaturas em todo o mundo.

O que é notável nesse caso não são os erros conceituais cometidos pelos jovens do vídeo, muitos dos quais provavelmente nunca chegaram perto de qualquer estudo sério sobre a natureza dos direitos.  O que é notável é que a óbvia reductio ad absurdum demonstrada no vídeo é de fato adotada por respeitados grupos defensores da justiça social e orgulhosamente propagandeada por eles como um apoio à sua filosofia.  Torna-se claro, sob essas circunstâncias, que estamos lidando com movimentos intelectualmente falidos.
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Notas
[1] GlobeMed, "GlobeMed at Rhodes College's Photo Project for the World Day of Social Justice" (20 de fevereiro de 2011). Um vídeo similar pode ser visto aqui.
Ben O'Neill é professor de estatística na Univesidade New South Wales, em Canberra, Austrália.  Já foi também advogado e conselheiro político.  Atualmente é membro do Independent Institute, onde ganhou em 2009 o prêmio Sir John Templeton de competição de ensaios.

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